Liturgia
11 de Maio
DOMINGO IV DA PÁSCOA – ANO C
MISSA
ANTÍFONA DE ENTRADA Salmo 32, 5-6
A bondade do Senhor encheu a terra,
a palavra do Senhor criou os céus. Aleluia.
Diz-se o Glória.
ORAÇÃO COLECTA
Deus eterno e omnipotente,
conduzi-nos à posse das alegrias celestes,
para que o pequenino rebanho dos vossos fiéis
chegue um dia à glória do reino
onde já Se encontra o seu poderoso Pastor,
Jesus Cristo, vosso Filho,
Ele que é Deus e convosco vive e reina, na unidade do Espírito Santo,
por todos os séculos dos séculos.
LEITURA I Actos 13, 14.43-52
«Vamos voltar-nos para os pagãos»
Leitura dos Actos dos Apóstolos
Naqueles dias, Paulo e Barnabé seguiram de Perga até Antioquia da Pisídia. A um sábado, entraram na sinagoga e sentaram-se. Terminada a reunião da sinagoga, muitos judeus e prosélitos piedosos seguiram Paulo e Barnabé, que nas suas conversas com eles os exortavam a perseverar na graça de Deus. No sábado seguinte, reuniu-se quase toda a cidade para ouvir a palavra do Senhor. Ao verem a multidão, os judeus encheram-se de inveja e responderam com blasfémias. Corajosamente, Paulo e Barnabé declararam: «Era a vós que devia ser anunciada primeiro a palavra de Deus. Uma vez, porém, que a rejeitais e não vos julgais dignos da vida eterna, voltamo-nos para os gentios, pois assim nos mandou o Senhor: ‘Fiz de ti a luz das nações, para levares a salvação até aos confins da terra’». Ao ouvirem estas palavras, os gentios encheram-se de alegria e glorificavam a palavra do Senhor. Todos os que estavam destinados à vida eterna abraçaram a fé e a palavra do Senhor divulgava-se por toda a região. Mas os judeus, instigando algumas senhoras piedosas mais distintas e os homens principais da cidade, desencadearam uma perseguição contra Paulo e Barnabé e expulsaram-nos do seu território. Estes, sacudindo contra eles o pó dos seus pés, seguiram para Icónio. Entretanto, os discípulos estavam cheios de alegria e do Espírito Santo.
Palavra do Senhor.
SALMO RESPONSORIAL Salmo 99 (100), 2.4.5.6.11.12.13b (R. 3c)
Refrão: Nós somos o povo de Deus,
somos as ovelhas do seu rebanho. Repete-se
Ou: Nós somos o povo do Senhor;
Ele é o nosso alimento. Repete-se
Ou: Aleluia. Repete-se
Aclamai o Senhor, terra inteira,
servi o Senhor com alegria,
vinde a Ele com cânticos de júbilo. Refrão
Sabei que o Senhor é Deus,
Ele nos fez, a Ele pertencemos,
somos o seu povo, as ovelhas do seu rebanho. Refrão
O Senhor é bom,
eterna é a sua misericórdia,
a sua fidelidade estende-se de geração em geração. Refrão
LEITURA II Ap 7, 9.14b-17
«O Cordeiro será o seu pastor
e os conduzirá às fontes da água viva»
Leitura do Livro do Apocalipse
Eu, João, vi uma multidão imensa, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé, diante do trono e na presença do Cordeiro, vestidos com túnicas brancas e de palmas na mão. Um dos Anciãos tomou a palavra para me dizer: «Estes são os que vieram da grande tribulação, os que lavaram as túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro. Por isso estão diante do trono de Deus, servindo-O dia e noite no seu templo. Aquele que está sentado no trono abrigá-los-á na sua tenda. Nunca mais terão fome nem sede, nem o sol ou o vento ardente cairão sobre eles. O Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água viva. E Deus enxugará todas as lágrimas dos seus olhos».
Palavra do Senhor.
ALELUIA Jo 10, 14
Refrão: Aleluia. Repete-se
Eu sou o bom pastor, diz o Senhor:
conheço as minhas ovelhas e elas conhecem-Me. Refrão
EVANGELHO Jo 10, 27-30
«Eu dou a vida eterna às minhas ovelhas»
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo, disse Jesus: «As minhas ovelhas escutam a minha voz. Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-Me. Eu dou-lhes a vida eterna e nunca hão-de perecer e ninguém as arrebatará da minha mão. Meu Pai, que Mas deu, é maior do que todos e ninguém pode arrebatar nada da mão do Pai. Eu e o Pai somos um só».
Palavra da salvação.
Diz-se o Credo.
ORAÇÃO DOS FIÉIS
Irmãos e irmãs:
Oremos a Jesus ressuscitado,
o Bom Pastor que nos guia para o Pai,
para que dê bons pastores à sua Igreja,
dizendo (ou: cantando), com alegria:
R. Cristo, ouvi-nos. Cristo, atendei-nos.
Ou: Cristo ressuscitado, ouvi-nos.
Ou: Rei da glória, ouvi a nossa oração.
1. Para que os ministros e os fiéis da santa Igreja
escutem sempre a voz do Bom Pastor
e O sigam com prontidão e confiança,
oremos.
2. Para que Deus conceda a paz ao mundo inteiro,
sacie os que têm fome e sede de justiça
e Se revele aos que ainda O não conhecem,
oremos.
3. Para que os jovens que o Bom Pastor chama a segui-l’O
sirvam o povo de Deus como Ele serviu
e abram os seus corações ao dom do Espírito,
oremos.
4. Para que Deus enxugue as lágrimas dos que sofrem,
dos doentes, dos moribundos e dos aflitos,
e o Bom Pastor os leve às fontes da água viva,
oremos.
5. Para que os fiéis desta nossa assembleia
sigam a Cristo, com amor e fidelidade,
e reconheçam a voz do Bom Pastor,
oremos.
Senhor Jesus Cristo, Bom Pastor,
ensinai-nos a reconhecer a vossa voz
no meio dos ruídos deste mundo
e não deixeis que nada nem ninguém
nos arrebate das vossas santas mãos.
Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos
ORAÇÃO SOBRE AS OBLATAS
Concedei, Senhor,
que em todo o tempo possamos alegrar-nos
com estes mistérios pascais,
de modo que o acto sempre renovado da nossa redenção
seja para nós causa de alegria eterna.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,
que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
Prefácio pascal
ANTÍFONA DA COMUNHÃO
Ressuscitou o Bom Pastor, que deu a vida pelas suas ovelhas
e Se entregou à morte pelo seu rebanho. Aleluia.
ORAÇÃO DEPOIS DA COMUNHÃO
Deus, nosso Bom Pastor,
olhai benignamente para o vosso rebanho
e conduzi às pastagens eternas
as ovelhas que remistes com o precioso Sangue do vosso Filho,
Ele que vive e reina pelos séculos dos séculos.
Excertos do livro “O inédito sobre os Evangelhos”
de autoria do Mons. João Scognamiglio Clá Dias, E.P.
Somos todos ovelhas de Jesus?
Assim como outrora Jesus, o Bom Pastor, procurou atrair todos para seu Rebanho, sua voz continua hoje a ressoar nos corações, apelando para que nos deixemos apascentar por Ele. Os fariseus O recusaram decididamente. Que atitude tomará este nosso mundo?
I – O simbolismo na obra da criação
Do nada, Deus criou todas as coisas, e de forma instantânea; não transformou seres preexistentes, mas agiu por um ato exclusivo de sua onipotência, incomunicável a qualquer outro ser, mesmo por milagre.1 Ele tornou realidade o universo tendo em vista sua própria glória: “D’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória por toda a eternidade!” (Rm 11, 36). O Concílio Vaticano I é categórico neste particular: “Se alguém negar que o mundo foi criado para a glória de Deus, seja anátema”.2
Deus é modelo de todos os seres criados
Poucos dogmas de nossa Fé tiveram tão numerosos adversários como o da criação do mundo, claramente afirmado na primeira frase do Gênesis: “No princípio, Deus criou os Céus e a Terra” (Gn 1, 1). A variedade de objeções e heresias contra essa verdade que atribui a Deus a causa eficiente da origem do universo é grande. Por outro lado, embora a doutrina de que Deus é causa exemplar de todos os seres de sua obra dos seis dias quase não levante inimigos frontais e explícitos, são muito difundidos costumes, modos de ser, gostos, etc., pervadidos de erros larvados a esse respeito Na quarta via das provas da existência de Deus, explicitadas por São Tomás de Aquino, encontramos também, além do Criador como o Pulchrum (o Belo) por essência, todas as belezas esparsas pelo universo como participações e decorrências dessa fonte infinita. Mais claramente, em sua Suma Teológica, o Doutor Angélico define Deus enquanto modelo de todos os seres criados: “Deus é a primeira causa exemplar de todas as coisas […]; existem na sabedoria divina as razões de todas as coisas, às quais chamamos ‘ideias’, ou seja, ‘formas exemplares’ existentes na mente divina. Essas ideias […] não são, contudo, algo realmente distinto da essência divina […]. Assim, pois, Deus é o primeiro exemplar de todas as coisas”.3
Uma nota de altíssima beleza na criação
A mente divina é infinitamente rica de seres possíveis e, se bem que Deus os possa criar todos, somente alguns Ele torna realidade. Assim, cada um de nós existiu como um possível na consideração de Deus, desde toda a eternidade.4 Apesar d’Ele não ter querido criar todos os seres possíveis, é enorme a quantidade de criaturas vindas à existência pelo seu poder divino. Essa superabundância, como ocorre com todos os atos de Deus, foi intencional; entre outras razões, procedeu Ele dessa forma para evitar a sensação de monotonia que poderia facilmente se produzir na alma humana. Nessa imensa obra que O levou a descansar no sétimo dia, o Criador quis colocar uma nota de altíssima beleza: o simbolismo.
Claro está que a beleza estética pura e simples tem grande valor, mas a intelecção desse valor não atingirá sua plenitude enquanto não remeta, de alguma forma, através de seu simbolismo, para o próprio Deus. A beleza simbólica tem uma categoria muito superior à estritamente física. Daí o terrível castigo de Deus aos que se negam a conhecê-Lo através dos símbolos e, em consequência, a adorá-Lo (cf. Rm 1, 18-23).
A rica simbologia do relacionamento entre o pastor e as ovelhas
Portanto, para nós, é uma obrigação moral ascender a Deus, e para isso nos servem as criaturas. No cumprimento desse dever através delas, encontraremos uma verdadeira hierarquia, pois umas nos serão mais ricas de conteúdo simbólico e, outras, menos. Por exemplo, no relacionamento com seus pais, uma criança, praticamente no todo de seu ser, sentir-se-á apoiada, compreendida e até afagada pela simples presença deles. Bastará vê-los afastar-se para julgar-se naufragando. Esse fenômeno, apesar de guardar características próprias, também se verifica entre adultos, pois todos necessitamos de receber as influências de nossos semelhantes, devido aos impulsos de nosso instinto de sociabilidade. Ora, o homem tem maior adesão às influências recebidas da parte daqueles que se constituem em seus modelos. Por isso, deixar-se enlevar, influenciar e mesmo formar pelos modelos que nos aproximam de Deus e a Ele nos assemelham não é um defeito, mas, muito pelo contrário, uma grande virtude e até obrigação.
Por outro lado, às vezes entende-se mais facilmente o protótipo de uma certa categoria analisando-se as relações entre seres inferiores a ela. Por exemplo, para nós nunca houve nem haverá modelo igual e, menos ainda, superior a Jesus Cristo; porém, comove-nos até a última fímbria de nossa sensibilidade vê-Lo refletido na figura do Bom Pastor que cuida carinhosamente de suas ovelhas. De fato, como anteriormente vimos, o universo existe, entre outros motivos, para nos auxiliar a melhor compreender a Deus, e nessa perspectiva está uma substanciosa condição para a prática do Primeiro Mandamento. Amar a Deus sobre todas as coisas, como uma de suas vias, consiste em conhecê-Lo através de todas as coisas, para assim poder adorá-Lo e entregar-se inteiramente a Ele.
É na rica simbologia do relacionamento entre pastor e ovelhas que se situa a perspectiva do Evangelho deste domingo.
II – Ambientação da cena de hoje
Antes de entrarmos na análise dos versículos que constituem o Evangelho deste 4º Domingo da Páscoa, relembremos em rápidos traços o contexto histórico de onde eles surgem.
Anualmente, cerca de dois meses após o término da festa dos Tabernáculos, por volta do fim de dezembro do nosso calendário, os judeus celebravam outra festa, a da Dedicação. Desde o ano 165 a.C. havia sido ela estabelecida, a partir da purificação do Templo levada a cabo por Judas Macabeu, após as profanações promovidas por Antíoco Epífanes (cf. I Mac 4, 36-59).
Nessa época, o Salvador contava seus trinta e dois anos de idade. Estaria Ele, portanto, ingressando no último período de sua vida pública. Era uma manhã de inverno e já bem cedo Se encontrava Ele no Pórtico de Salomão, edificado com alvíssimas pedras. Nessa parte exterior do Templo, na face oriental, Jesus estava à espera de constituir-se uma assembleia de ouvintes. Em pouco tempo juntou-se em torno d’Ele uma grande multidão. Desta não podiam estar ausentes seus inimigos.
A fama de Jesus se espalhara rapidamente, sobretudo por causa dos numerosos milagres e da magnitude deles. Talvez pelo fato de, bem naqueles dias, ter Ele curado dez leprosos, os fariseus imploravam uma declaração taxativa sobre sua identidade: era ou não o Messias? À primeira vista, o pedido deles parece, não só razoável, mas até mesmo afetuoso. Entretanto, a Jesus ninguém engana. Quantas vezes, ao longo da História da Igreja, ímpios e hereges se serviram dos mesmos pretextos daqueles fariseus! Não era de clareza nem de evidência que necessitavam, mas, sim, de boa-fé, docilidade e humildade.
Os fariseus se obstinavam na rejeição a Jesus
Temos tornado claro, em anteriores comentários, o quanto os judeus — especialmente os fariseus — concebiam o Messias de forma equivocada. Viam-No como um conquistador político e militar, um libertador do domínio, até mesmo sob o aspecto financeiro, do Império ao qual estavam subjugados; ademais, deveria Ele conferir aos seus conacionais toda a glória e a supremacia universal. Os que consideravam no Messias a exclusividade dos aspectos religiosos, d’Ele esperavam a força para obrigar à conversão e à prática da Lei — na qual, segundo seus fanáticos critérios, encontrava-se a mais alta santidade — todas as outras nações.
Ora, Jesus era, sim, o Messias esperado, mas muito diferente dessa distorcida concepção. Ele é o Filho Unigênito do Pai, Deus e Homem verdadeiro; seu Reino não é deste mundo… “Veio para o que era seu, mas os seus não O receberam” (Jo 1, 11). Exceção feita da Samaritana (cf. Jo 4, 26) e de seus discípulos, ninguém ouvira Jesus atribuir-Se esse título, mas, na festa dos Tabernáculos, Ele não poderia ter sido mais explícito sobre sua origem, sua natureza e até mesmo sua missão (cf. Jo 7). Por isso Jesus afirmou já Se ter pronunciado sobre sua identidade e, apesar disso, não Lhe terem crido (cf. Jo 10, 24-26). Os fariseus não O entenderam, porque não se entregaram ao Messias como Ele realmente é; pelo contrário, desejavam que o Messias Se entregasse a eles como eram, com seus caprichos e fantasias.
De nada adiantaram todos os milagres, pregações, nem mesmo a manifestação das virtudes de Jesus para dissolver o egoísmo pétreo e incrédulo daqueles fariseus. Para eles só havia uma e exclusiva infalibilidade: a de suas ideias político-religiosas. Essa obstinação não é novidade para nós neste século XXI: a História, os fatos, o Papa, a Igreja, Nossa Senhora em Fátima, o universo, falam a uma só voz, mas, à exceção de poucos, ninguém quer entender, ou crer…
Essa é a muralha de aço que a Verdade tem sempre diante de si. Em geral, a Verdade de Deus exige de nós uma renúncia feita de dor; é preciso arrepender-se e fazer penitência, como proclamava João Batista, aspirar à perfeição, amar o bem e admirar o belo. Em uma palavra, é indispensável ser do número das ovelhas de Jesus. E os fariseus não o eram, por isso Ele procura ensinar-lhes não só com palavras, mas com fatos, pois não há como negá-los. Jesus, em resposta à pergunta se Ele era o Cristo, simbolicamente os exclui de seu Reino, pelo menos naquele momento, devido ao vício do orgulho tão penetrado nas almas deles (cf. Jo 10, 24-26). Sentença terrível que caberá eternamente àqueles recalcitrantes, obstinados e empedernidos na incredulidade de seu orgulho. Essa é a opinião de Santo Agostinho: “Disse-lhes isso porque os via predestinados à morte eterna, e não à vida eterna que Ele lhes havia conquistado com seu Sangue. As ovelhas nada mais fazem do que crer no seu pastor e segui-Lo”.5
III – Significado das palavras de Jesus
Entremos agora na análise do Evangelho deste 4º Domingo da Páscoa.
O Pastor ama e conhece profundamente suas ovelhas
27 “As minhas ovelhas ouvem a minha voz, Eu as conheço, e elas Me seguem”.
Das metáforas relacionadas com a pesca, lidas no anterior domingo, passamos agora às do pastoreio. A Sabedoria infinita de Deus nelas pensou desde toda a eternidade, para assim melhor Se fazer entender pelos homens no relacionamento entre Criador e criatura. A própria natureza da Judeia facilitava as características desta simbologia usada pelo Divino Mestre. A terra naquelas regiões não era fértil para a plantação, devido aos seus consideráveis trechos pedregosos e um tanto áridos. O pastoreio ali se adaptava mais comodamente do que a agricultura e, assim mesmo, exigia do rebanho um grande número de deslocamentos.
Essa situação redundava na necessidade de vigilância e aplicação mais esmeradas do pastor. As circunstâncias tornavam mais nítidas as diferenças entre o autêntico pastor e o mercenário. Deus quis o nascimento da figura do pastoreio e a colocou com destaque na pluma dos literatos. Até os poetas pouco dados a compreenderem a excelsitude da castidade são levados a realçar a pureza virginal do zelo caridoso dos pastores, em geral, por suas ovelhas.
A vida do pastor nos leva a considerar seu amor casto, inocente, governando sem decretos, muito pelo contrário, baseado num relacionamento íntimo, fortemente paternal — talvez melhor se diria maternal — através do qual atende todas as conveniências e necessidades de suas ovelhas. Ele sabe entretê-las, defendê-las, ampará-las, levá-las a pastar e até mesmo agradá-las com seus cantos ou com as melodias de sua flauta. “Ele chama as suas ovelhas uma a uma pelos seus nomes” (Jo 10, 3). São Tomás de Aquino ressalta a grande familiaridade existente nesse relacionamento, pois chamar pelo nome significa ter íntima amizade. Ao revertermos os símbolos aos simbolizados, a realidade e a significação se tornam incomparavelmente mais profundas. Cristo conhece a natureza e o ser de cada uma de suas ovelhas, e também o objetivo imediato, tanto quanto o último, para o qual foram criadas, assim como o que são e o que poderão vir a ser com o auxílio de sua graça. Por isso o Doutor Angélico julga ver nesse “chamar pelo nome” — nominatim — “a eterna predestinação, pela qual Deus conhece cada ovelha, cada homem”.6
O homem, o mais elevado ser percebido por nossos sentidos, não é criado em série. Deus aplica seu poder criador sobre cada pessoa, uma a uma, e por isso não há homens iguais, nem moral nem fisicamente, nem sequer no referente às circunstâncias da vida individual e menos ainda no que tange à vocação pessoal. Daí a profundidade insondável desse conhecimento dispensado por Jesus a cada um de nós, a ponto de compará-lo ao existente entre o Pai e o Filho (cf. Jo 10, 15), ato eterno tão absoluto que, através dele, uma Pessoa divina é gerada pela outra. O conhecimento que o Pai tem do Filho, portanto, não é uma imagem intelectual acidental, como acontece conosco, ao fazermos uso de nossa razão. O conhecimento do Pai é substancial e amoroso, através do qual, por geração, Ele dá sua própria essência ao Filho. Este, por sua vez, com amor substancial e infinito também, restitui ao Pai o que d’Ele recebe; e tão rico é esse amor mútuo que dele procede o Espírito Santo. Ora, aí está o padrão do conhecimento de Jesus a cada um de nós. Por isso nada de nosso exterior ou interior — seja-nos nocivo ou útil, nossas enfermidades físicas ou espirituais, seus remédios, etc. — nada foge à sua onisciência. Não há em Jesus uma fímbria sequer de frieza nesse conhecimento em relação a nós, como Ele mesmo disse e realizou na figura do Bom Pastor, aquele que dá a vida por suas ovelhas.
Por outro lado, as ovelhas seguem o Pastor. Pela sua graça, conhecem as maravilhas que estão n’Ele, sua doutrina dotada de potência, sua vida, sua misericórdia, sua sabedoria, numa palavra, sua humanidade e divindade. E, por isso, ao ou-virem sua voz, elas O seguem, como Saulo no caminho de Damasco (cf. At 9, 5-9) ou como Madalena ao ser chamada pelo nome, junto ao Sepulcro do Senhor (cf. Jo 20, 16). Portanto, ao conhecê-Lo, seguem-No no cumprimento de seus desígnios: “Aquele que diz conhecê-Lo e não guarda os seus Mandamentos é mentiroso e a verdade não está nele” (I Jo 2, 4). Quando ouvem sua voz, enchem-se de amor pelo Pastor, a ponto de estarem dispostas a entregar suas vidas por Ele, e ardem do desejo de que Ele inabite em suas almas.
Ninguém consegue arrebatar alguma ovelha ao Bom Pastor
28 “Eu lhes dou a vida eterna; elas jamais hão de perecer, e ninguém as roubará de minha mão”.
Aqui, Jesus passa a Se representar, já não só como o Pastor, mas também como o pasto, pois confere às ovelhas sua própria vida. Levemos em conta que até mesmo a vida física delas é alimentada por um “pasto”, criatura sua, pois nada existe que não tenha tido n’Ele sua origem. Ademais, elas são nutridas espiritualmente através de sua palavra, dado que, conforme Ele mesmo diz, “nem só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4). E, acima de tudo, pela graça (semente da glória eterna), em função da qual a própria vida de Cristo se introduz em suas almas e é alimentada pelos Sacramentos, em especial pela Eucaristia. Assim, a espiritualidade delas vai-se ro-bustecendo e sendo vivificada n’Ele. Sua própria Carne, Sangue, Alma e Divindade constituem o insuperável alimento da vida de suas ovelhas. E na eternidade, a graça se transformará em glória, recebendo d’Ele sua própria vida.
Que terão entendido os fariseus de todo esse universo de extraordinária riqueza? Não é difícil conjecturar, pois quem não possui a vida eterna conferida pelo Pastor, como poderá compreender algo desses esplendores? Ora, ao afirmar que dá a vida eterna às suas ovelhas, Ele deixa entrever que não entrega essa vida àquelas que não são de seu redil; ao mesmo tempo, declara novamente sua essência divina, uma vez que nenhuma criatura, por mais excelente que possa ser — incluindo os Anjos —, jamais terá o poder de conferir tão insuperável dom. Entrar na vida eterna significa estar livre de todos os tormentos e paixões: ambições, invejas, ódios, dores, etc., como também ter sido perdoado de todos os pecados e desvarios. Entretanto — Oh, mistério da iniquidade! —, os fariseus não queriam se beneficiar desses dons que, como a todas as pessoas, lhes era oferecido.
Mas essa é também a situação das ovelhas pertencentes ao rebanho de Jesus quando O rejeitam. “Cristo, naquilo que Lhe cabe, dá a vida eterna a suas ovelhas, e nenhuma delas perecerá por culpa do Pastor; aquela que se perder será por sua própria culpa. Também a graça que Cristo dá nesta vida a suas ovelhas é suficiente, por sua natureza, para levá-las à vida eterna, e se algumas não chegam lá é por culpa de si próprias, por não quererem seguir a Cristo”.7
As ovelhas de Jesus estão em sua posse; nem os homens, nem os demônios conseguem, quer seja por força, quer por subterfúgios, arrancá-las de suas mãos onipotentes. “Se perecerem será pela própria vontade delas, não por falta de poder d’Ele”.8 Na afirmação de Cristo que aqui analisamos, Ele se manifesta “suficientemente forte e poderoso para que suas ovelhas possam entrar, graças a Ele, na vida eterna, livrando-as antes de qualquer perigo”.9
29 “Meu Pai, que mas deu, é maior que todas as coisas; e ninguém pode arrebatá-las da mão de meu Pai”.
Dissentem entre si autores de grande peso a propósito das traduções latina e grega deste versículo. A primeira se concentra nas coisas concedidas pelo Pai a seu Unigênito: “Meu Pai, o que me deu é maior que todas as coisas, e ninguém as pode arrebatar de minhas mãos”. A outra coloca o Pai como sendo o objeto da comparação feita por Jesus — vide formulação acima. Uma vez que não há unanimidade de interpretação, preferimos a formulação latina: “todas as coisas”, ou seja, “a Igreja, que Ele Me entregou para que Eu a regesse. As ovelhas que Me deu para que as apascentasse. É maior, isto é, mais caro, mais digno de apreço que qualquer outra coisa”.10 Assim, uma alma que se entrega a Jesus pela virtude da fé, amando-O sobre todas as coisas e sendo perseverantemente fiel, deve estar convicta de que tudo lhe vem do Pai, pelos méritos do Filho.
Jesus afirma sua divindade e é rejeitado pelos fariseus
30 “Eu e o Pai somos um”.
Ouçamos o padre Manuel de Tuya, OP, comentando este versículo: “Por fim, Cristo, como garantia desse poder salvífico que tem para suas ovelhas, proclama sua divindade, dizendo: ‘Eu e o Pai somos uma só coisa’. Essa unidade entre o Pai e o Filho se expressa diretamente no poder. Os poderes divinos do Pai são os do Filho. Não no sentido de que a voz ou o anúncio de um profeta é a voz ou o anúncio de Deus. Precisamente os profetas de modo ex-plícito falavam em nome de Deus, e isso não causava estranheza a ninguém. Mas no presente caso a afirmação é absolutamente transcendente na comunicação de poderes. E, se existe essa comunidade ou identidade de poderes, pressupõe isso uma unidade e identidade de natureza. Daí deixar-se ver o mistério divino de Cristo.
“Essa expressão encontra sua explicação na ‘Oração sacerdotal’, na qual Cristo pede ao Pai que O glorifique com ‘a glória que tive junto de Ti, antes que o mundo fosse criado’ (Jo 17, 5), do mesmo modo como no Prólogo, no qual se ensina abertamente que o Verbo, que vai Se encarnar, ‘era Deus’”.11
Essa é a mais ousada, profunda e misteriosa afirmação feita por Jesus a respeito da comunidade de essência entre Ele e Deus: trata-se de uma união metafísica insondável.
Os fariseus que ali estavam deviam ter-se mostrado fiéis intérpretes dos profetas, humildemente abandonando seus egolátricos preconceitos nacionalistas e suas exóticas práticas religiosas. Se eles não endurecessem seus corações, mas se deixassem penetrar pelas maravilhosas revelações do esperado Messias — comprovadas pelos numerosos e convincentes milagres por Ele operados —, pelo dom da fé compreenderiam e amariam aquele Deus feito Homem e O seguiriam. Seriam ovelhas de seu rebanho.
O que dizer a respeito do mundo atual, que não antepõe a lei escrita à Lei do Espírito — como o faziam os maus judeus de outrora —, mas coloca a lei do gozo e da carne, a lei do relativismo contra a Lei de Cristo, consagrada por Ele com sua vida e ressurreição, e por sua Santa Igreja?…
Muito opostamente à boa posição, quiseram os fariseus colher pedras para matar Jesus por tantos e insuperáveis dons que lhes oferecia (cf. Jo 10, 31). O que fará o mundo de hoje contra Cristo e sua Santa Igreja em face das dádivas que, através d’Eles, lhes promete Deus?
_______________________________
1) Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. L.II, c.19.
2) Dz 1803.
3) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.44, a.3.
4) Cf. Idem, q.15, a.2-3.
5) SANTO AGOSTINHO, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Ioannem, c.X, v.22-30.
6) SÃO TOMÁS DE AQUINO. Super Ioannem. C.X, lect.1.
7) MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Juan. Madrid: BAC, 1954, v.III, p.638-639.
8) Idem, p.639.
9) Idem, ibidem.
10) Idem, p.640.
11) TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.1181-1182.