Liturgia

15 de Setembro

XXIV Domingo do Tempo Comum – Ano B

MISSA

ANTÍFONA DE ENTRADA cf. Sir 36, 18

Dai a paz, Senhor, aos que em Vós esperam
e confirmai a verdade dos vossos profetas.
Escutai a prece dos vossos servos e abençoai o vosso povo.

ORAÇÃO COLECTA
Deus, Criador e Senhor de todas as coisas,
lançai sobre nós o vosso olhar;
e para sentirmos em nós os efeitos do vosso amor,
dai-nos a graça de Vos servirmos com todo o coração.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,
que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.

LEITURA I Is 50, 5-9a
«Apresentei as costas àqueles que me batiam»

Leitura do Livro de Isaías

O Senhor Deus abriu-me os ouvidos e eu não resisti nem recuei um passo. Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam. Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio e por isso não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra e sei que não ficarei desiludido. O meu advogado está perto de mim. Pretende alguém instaurar-me um processo? Compareçamos juntos. Quem é o meu adversário? Que se apresente! O Senhor Deus vem em meu auxílio. Quem ousará condenar-me?
Palavra do Senhor.

SALMO RESPONSORIAL Salmo 114 (116), 1-2.3-4.5-6.8-9 (R. 9)
Refrão: Andarei na presença do Senhor
sobre a terra dos vivos. Repete-se
Ou: Caminharei na terra dos vivos
na presença do Senhor. Repete-se
Ou: Aleluia. Repete-se

Amo o Senhor,
porque ouviu a voz da minha súplica.
Ele me atendeu,
no dia em que O invoquei. Refrão

Apertaram-me os laços da morte,
caíram sobre mim as angústias do além,
vi-me na aflição e na dor.
Então invoquei o Senhor:
«Senhor, salvai a minha alma». Refrão

Justo e compassivo é o Senhor,
o nosso Deus é misericordioso.
O Senhor guarda os simples:
estava sem forças e o Senhor salvou-me. Refrão

Livrou da morte a minha alma,
das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
sobre a terra dos vivos. Refrão

LEITURA II Tg 2, 14-18
«A fé sem obras está morta»

Leitura da Epístola de São Tiago

Irmãos: De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras? Poderá essa fé obter-lhe a salvação? Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir e lhes faltar o alimento de cada dia, e um de vós lhes disser: «Ide em paz. Aquecei-vos bem e saciai-vos», sem lhes dar o necessário para o corpo, de que lhes servem as vossas palavras? Assim também a fé sem obras está completamente morta. Mas dirá alguém: «Tu tens a fé e eu tenho as obras». Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé.
Palavra do Senhor.

ALELUIA cf. Gal 6, 14
Refrão: Aleluia. Repete-se
Toda a minha glória está na cruz do Senhor,
por quem o mundo está crucificado para mim
e eu para o mundo. Refrão

EVANGELHO Mc 8, 27-35
«Tu és o Messias… O Filho do homem tem de sofrer muito»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo, Jesus partiu com os seus discípulos para as povoações de Cesareia de Filipe. No caminho, fez-lhes esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?». Eles responderam: «Uns dizem João Baptista; outros, Elias; e outros, um dos profetas». Jesus então perguntou-lhes: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias». Ordenou-lhes então severamente que não falassem d’Ele a ninguém. Depois, começou a ensinar-lhes que o Filho do homem tinha de sofrer muito, de ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos escribas; de ser morto e ressuscitar três dias depois. E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas. Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O. Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos, repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás, porque não compreendes as coisas de Deus, mas só as dos homens». E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me. Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho, salvá-la-á».
Palavra da salvação.

ORAÇÃO DOS FIÉIS

Caríssimos fiéis: Voltemo-nos para Cristo, que Se fez igual a nós, para Se compadecer daqueles que O invocam, e digamos (ou: e cantemos), confiadamente:

R. Ouvi-nos, Senhor. Ou: Ouvi, Senhor, a nossa oração.

Ou: Senhor, venha a nós o vosso reino.

1. Pela Igreja santa, fermento de vida e de salvação, para que procure a sua força na cruz de Cristo e seja sempre testemunha da esperança, oremos.

2. Pelos governantes do mundo inteiro, para que Jesus Cristo lhes dê a graça de promoverem a paz e a justiça, oremos.

3. Pelos leitores e pelos ouvintes da Palavra, para que o Filho de Deus lhes grave no coração que a fé sem obras é morta, oremos.

4. Pelos que não encontram sentido para a vida, para que as palavras e o testemunho de Cristo os iluminem na procura da verdade, oremos.

5. Por todos nós aqui reunidos em família, para que saibamos caminhar no seguimento de Cristo levando a cruz que não escolhemos, oremos.

Senhor Jesus Cristo, que dissestes aos vossos discípulos: “Se alguém quiser seguir-Me, tome a sua cruz e siga-Me”, dai-nos a graça de responder ao vosso convite. Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos.
ORAÇÃO SOBRE AS OBLATAS
Ouvi, Senhor, com bondade as nossas súplicas
e recebei estas ofertas dos vossos fiéis,
para que os dons oferecidos por cada um de nós
para glória do vosso nome
sirvam para a salvação de todos.
Por Nosso Senhor.

ANTÍFONA DA COMUNHÃO Salmo 35, 8
Como é admirável, Senhor, a vossa bondade!
À sombra das vossas asas se refugiam os homens.

Ou cf. 1 Cor 10, 16
O cálice de bênção é comunhão no Sangue de Cristo;
e o pão que partimos é comunhão no Corpo do Senhor.

ORAÇÃO DEPOIS DA COMUNHÃO
Senhor nosso Deus,
concedei que este sacramento celeste
nos santifique totalmente a alma e o corpo,
para que não sejamos conduzidos pelos nossos sentimentos
mas pela virtude vivificante do vosso Espírito.
Por Nosso Senhor.

 

Excertos do livro “O inédito sobre os Evangelhos”
de autoria do Mons. João Scognamiglio Clá Dias, E.P.

Salvar ou perder a vida?

Preparando os Apóstolos para o que havia de vir, Jesus lhes revela, ao mesmo tempo, sua divindade e sua próxima Paixão. As reações de Pedro lhe valem o louvor e a repreensão da parte do Senhor, e o episódio termina com Jesus nos convidando a segui-Lo: “tome a sua cruz”.

I – A via eleita por Deus para a Redenção

O orgulho de nossa natureza decaída leva o homem, não poucas vezes, a imaginar-se Deus ou a Ele procurar igualar-se.

Talvez por esta razão, mas sobretudo pelas limitações de nosso estado de contingência, se tivéssemos de imaginar um Salvador, este teria de ser glorioso, transcorrendo sua missão de vitória em vitória e coroada por um esplendoroso triunfo final. Foi como O conceberam os filhos de Zebedeu e sua mãe: “Perguntou-lhe Ele: ‘Que queres?’. Ela respondeu: ‘Ordena que estes meus dois filhos se sentem no teu Reino, um à tua direita e outro à tua esquerda’” (Mt 20, 21); “Concede-nos que nos sen-temos na tua glória, um à tua direita e outro à tua esquerda” (Mc 10, 37).

Tal mentalidade acompanhou o povo eleito ― inclusive os Apóstolos ― até a descida do Espírito Santo, conforme nos declara São Lucas, nos Atos dos Apóstolos: “Assim reunidos, eles O interrogavam: ‘Senhor, é porventura agora que ides instaurar o reino de Israel?’” (1, 6). Jesus já havia declarado que retornaria ao Pai, que seu Reino não era deste mundo, etc. Entretanto, nada disso bastara; os anseios de domínio não os abandonavam um só instante. Eram estas as ideias fixas que tornaram obscura a fé do povo eleito, dificultando-lhe aderir aos dogmas da Encarnação, Paixão e Morte do Cordeiro de Deus.

De fato, o grande mistério de um Homem-Deus padecente e moribundo, pregado numa Cruz entre dois ladrões, abandonado por seu povo, desprezado por todos e mais especialmente pelas altas autoridades, só é admissível com uma vigorosa fé. Todavia, esta foi a via eleita por Deus para a Redenção.

A glória não esteve ausente na Paixão do Senhor. Muito pelo contrário, é impossível imaginá-la maior ou, até mesmo, acrescível de alguma fímbria, por minúscula que seja. Porém, ela não pode ser vista por um prisma meramente temporal. Esta glória só é compreensível através dos mirantes da eternidade. Aliás, se bem que nasçamos nos calendários deste mundo, nosso destino post mortem não tem limites no tempo, e é em função dele que devemos pautar nossa existência.

Este é o fundo de quadro no qual se desenrola a Liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum.

A síntese do presente Evangelho se concentra em dois extremos harmônicos. De um lado, recebem os Apóstolos a revelação da divindade de Cristo e, de outro, da Paixão do Senhor. Como anexos a este quadro de enorme paradoxo, há a reação de Pedro e, por fim, a declaração de Jesus sobre a condição para segui-Lo: “tome a sua cruz”.

II – “Tu és o Cristo”

Os fatos se passam a caminho de Cesareia de Filipe. Esta cidade outrora se chamara Paneion, pois, durante longo período seus habitantes prestaram culto ao deus Pan, numa gruta natural ali existente. Filipe, filho de Herodes ― o Grande ―, empregou todos os seus esforços para reconstruí-la, ampliando-a e embelezando-a, e para cair nas boas graças do imperador Tibério César mudou-lhe o nome para Cesareia de Filipe.

Conforme opina Santo Agostinho,1 fazendo uma aproximação entre esta narração de Marcos e a de Lucas, Jesus, depois de rezar recolhido à parte, começou a interrogar os Apóstolos (cf. Lc 9, 18). Transparece neste episódio o empenho do Divino Mestre em preparar os fundamentos de sua Igreja. Já desenvolvera amplamente sua ação junto ao público, tornava-se necessário, àquela altura, deixar fixados os elementos para dar continuidade à sua obra salvadora.

Para o mundo, Jesus era um grande herói

Naquele tempo, 27 Jesus partiu com seus discípulos para os povoados de Cesareia de Filipe. No caminho perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens que Eu sou?” 28 Eles responderam: “Alguns dizem que Tu és João Batista; outros que és Elias; outros, ainda, que és um dos profetas”.

Neste diálogo constataremos, uma vez mais, a grande incoerência do espírito humano. Com toda a facilidade, naquela quadra histórica, chegavam os homens a cultuar como deus o imperador romano. Assim, nesta mesma cidade, que havia sido dada de presente ao pai de Filipe, foi construído, ao lado do “santuário” dedicado ao deus Pan, um faustoso templo de mármore para se prestar culto ao imperador. Alguém poderia objetar que não nascera este plano — e menos ainda a sua realização — do seio do judaísmo; mas quantos foram os deuses criados pelo povo eleito, em seu passado? Até o efod produzido e utilizado por Gedeão passou a ser objeto do culto de latria e, por esta razão, causa de castigos (cf. Jz 8, 24-27). Ou seja, com a maior facilidade os judeus caíam no mimetismo idolátrico com os povos pagãos. Em contrapartida, quando se tratou do Deus verdadeiro feito Homem, praticando uma fileira de incontáveis milagres comprobatórios de sua onipotência, não se levantou uma opinião unânime de que aparecera o Messias esperado pelos patriarcas e profetas, e previsto nas Escrituras. Alguns poucos, de fato, reconheceram-No, mas a maioria preferia admitir toda espécie de quimeras e exageros, a aderir a um Messias cuja imagem não conferia com os ditames equivocados e caprichosos de cada um.

A pergunta de Jesus lhes é dirigida no último ano de sua vida pública. A demonstração de quem era Ele, pelos fatos concretos, já se tornara suficientemente conclusiva. Inclusive os demônios O haviam proclamado o “Santo de Deus” (Mc 1, 24), o “Filho de Deus” (Mc 3, 11), o “Filho do Deus Altíssimo” (Lc 8, 28). O Batista havia declarado não ser digno de Lhe desatar a correia das sandálias, devido à sua inferioridade (cf. Mc 1, 7). Contudo, os lábios do povo não pronunciaram o título de Messias.

Este é o resultado da triste inclinação do espírito humano para o erro, quando perde a inocência. Sem resistência segue o caminho oposto ao das verdades relativas à salvação. Não é fácil à opinião pública reconhecer como autênticos e dignos de crédito os valores reais, sobretudo quando estes contradizem tendências racionalizadas opostas à moral.

Não obstante, nota-se, pelas suposições enunciadas pelos Apóstolos, que se atribuía a Jesus a categoria dos grandes heróis da história judaica, chegando-se a considerá-Lo um precursor do Messias.

A resposta de Pedro

29 Então Ele perguntou: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” Pedro respondeu: “Tu és o Messias”.

E por que Jesus lhes faz esta pergunta?

Jamais por mera curiosidade, pois, enquanto Verbo Eterno, Ele tudo sabia ab initio. Tornar explícito o ridículo dos conceitos gerais a seu respeito, aos olhos dos Apóstolos, trazia uma enorme vantagem, como sublinha São João Crisóstomo,2 pois os obrigava a se destacarem do mundo e alçarem voo às mais elevadas camadas do pensamento: à visão sobrenatural. Tanto mais que poucos meses restavam a Ele para formá-los, antes de subir ao Pai, e era de fundamental importância tornar-lhes explícita a exata noção de quem era Aquele que os havia transformado em pescadores de homens. Então pergunta aos Apóstolos: “E vós, quem dizeis que Eu sou?”.

Pedro responderá em seu nome, e não de todos, como afirmam certos autores. Este pormenor se tornará patente através dos outros Evangelhos. Marcos omite alguns detalhes importantes, como o elogio feito pelo Divino Mestre à declaração de Pedro, antes de constituí-lo como pedra fundamental de sua Igreja (cf. Mt 16, 17-19).

Quem comenta com precisão esta passagem é o Cardeal Gomá y Tomás: “Pedro se adianta à resposta dos outros, talvez por tê-los notado vacilantes na opinião a respeito de Jesus. A graça de Deus ilumina seu entendimento, e seu modo de ser impetuoso, ajudado por esta mesma graça, o faz ser o primeiro a confessar a fé. Noutra ocasião, também tinha sido ele o único a elevar sua voz para falar de Jesus: ‘Respondeu Simão Pedro, e disse…’ (cf. Jo 6, 67-69).

“A definição que Pedro dá de Jesus é plena, precisa, enérgica: Tu és o Cristo, o Messias em pessoa, prometido aos judeus e ardentemente esperado por eles. Mais: Tu és o Filho de Deus, e não, como eram designados os santos, no sentido de uma relação moral de santidade ou por uma filiação adotiva, mas sim o Filho único de Deus segundo a natureza divina, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Se o Apóstolo não tivesse entendido assim, não teria necessitado uma especial revelação de Deus. O que com imprecisão tinham insinuado os Apóstolos, em outras ocasiões (cf. Mt 14, 33; Jo 1, 49), é afirmado por Pedro de forma clara e categórica. O Pai de Jesus é Deus vivo: vivo porque é vida essencial que essencialmente gera desde toda a eternidade um Filho vivo. Vivo por oposição às divindades mortas do paganismo”.3

Jesus proíbe divulgar que Ele era o Messias

30 Jesus proibiu-lhes severamente de falar a alguém a seu respeito.

Em seguida a esta belíssima proclamação de fé realizada por Pedro, os três primeiros Evangelhos registram uma formal e categórica proibição de Jesus aos Apóstolos de nada contarem a ninguém. Esta ordem de guardar silêncio não havia sido a primeira. Com certa frequência era imposta também a alguns doentes ou possessos por Ele curados.

De um lado, até então não havia chegado o momento de divulgar revelações que o público ainda não estava suficientemente preparado para compreender. Os erros a propósito da figura do Messias eram substanciais e por demais naturalistas. Por muito menos o povo já quisera proclamá-Lo rei (cf. Jo 6, 15), com todas as graves e inconvenientes consequências políticas que daí decorreriam. Quiçá, neste caso, não teria sido Ele preso e morto pelos romanos? Ademais, bem poderia acontecer que os fariseus e o Sinédrio se aproveitassem de tal circunstância para antecipar a execução de seu plano deicida.

Os próprios Apóstolos só estiveram preparados para pregar com toda eficácia sobre o Cristo, Deus e Homem verdadeiro, depois da descida do Espírito Santo sobre eles. Antes disso, semelhantes equívocos sobre a messianidade, assumidos por todo o povo eleito, eram compartilhados por eles e, por isso mesmo, é bem provável que em seu apostolado apresentariam de maneira defectiva a figura do Redentor. Assim, dado ser o mistério da Encarnação tão insuperável e elevado, por sua própria substância, só Aquele que é o Verbo de Deus poderia pregá-lo com a devida dignidade. Segundo decretos eternos, a divindade de Jesus devia estar selada pelo preciosíssimo Sangue do Filho de Deus.

De outro lado, se esta revelação tivesse sido pública, a fé do povo, provavelmente débil, não resistiria à fortíssima prova da Paixão, tal qual se deu com os Apóstolos. Pregar sobre a divindade de um Homem que em breve seria crucificado entre dois ladrões não parecia ser fácil tarefa.

III – Jesus prepara os Apóstolos para a Paixão

31 Em seguida, começou a ensiná-los, dizendo que o Filho do Homem devia sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e doutores da Lei; devia ser morto, e ressuscitar depois de três dias.

Em rigor de objetividade, não era a primeira vez que Jesus tratava de sua futura Paixão. De forma implícita já a ela Se referira anteriormente (cf. Mt 9, 15; 12, 40; Jo 2, 19-21; 3, 14), mas não com tanta clareza como agora. Sobretudo pelo fato de todos estarem sob a forte impressão da figura de um Messias triunfal e político, era indispensável usar de inteira franqueza. Ora, o momento não podia ser mais propício para tal, pois o coração de cada um deles estava pervadido pela consideração da divindade do Mestre. Sem embargo, esta revelação deve ter sido surpreendente e, por este motivo, representou uma excelente ocasião para introduzi-los nas perspectivas de sua Morte. A divindade de Nosso Senhor permaneceria como forte lembrança no fundo de suas almas, apesar de estar, nas aparências, mais do que invisível, destruída. O fato de ter sido prevista com tantos detalhes, em especial como consta no presente versículo, constituía um auxílio à virtude da fé e afastava qualquer resquício de escândalo. Compreende-se que São Paulo ensine que sem a Ressurreição nossa fé seria vã (cf. I Cor 15, 14).

Os primeiros a meditarem na Paixão

Os Apóstolos foram muito privilegiados, também a respeito disto. Apenas eles e a Santíssima Virgem puderam meditar sobre as ignomínias e tormentos pelos quais iria passar o Salvador, antes até de se terem estes verificado. Foram eles os primeiros convidados a se beneficiar das grandezas da misericórdia divina, de um Deus que Se encarna e morre por amor a cada um de nós. Quanta consolação, graças e forças estavam à disposição deles a partir desta revelação!

Aliança entre justiça e misericórdia

Jesus afirma a necessidade de sua Morte, que seria injustamente imposta pelo Sinédrio. Por desígnios inimagináveis, o Pai havia determinado, desde toda a eternidade, a aliança entre a mais severa justiça e a mais afetuosa misericórdia. Para salvar-nos, não hesitou em nos dar seu próprio Filho e, no entanto, ao considerar os direitos de sua justiça exigiu deste Filho muito amado a pior das mortes.

Nosso Senhor sofre enquanto Filho do Homem, e por ser Filho de Deus nos salva pelo oferecimento de seus tormentos. Sua humanidade está hipostaticamente unida à natureza divina, e por isso sua Paixão tem mérito infinito. Em função destas duas naturezas unidas numa Pessoa Divina, Jesus repara a desobediência de nossos primeiros pais, bem como os pecados de toda a humanidade. Sendo a cabeça e o primogênito dos homens, acaba por constituir uma nova geração de resgatados e regenerados, pela força de seu preciosíssimo Sangue. Este é o mais fino fundo da proposta que Ele faz aos Apóstolos, ao lhes revelar sua Morte, conforme diria mais tarde São Paulo: “O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio do Céu” (I Cor 15, 47). Era-lhes indispensável renunciar ao velho Adão, originado do barro, para se entregarem ao Novo Adão, descido dos Céus.

O amor não se contenta com pouco. Ora, o amor de Nosso Senhor é infinito e deseja a plenitude de sua entrega às dores, à rejeição das mais altas autoridades eclesiásticas, à morte e ao sepultamento. Que maiores provas de amor, a Deus e à humanidade decaída, poderiam ser dadas?

Por fim, eis uma revelação que anula qualquer possibilidade de escândalo proveniente da Crucifixão: “ressuscitar depois de três dias”. É o penhor de nossa ressurreição. A morte, limite máximo do poder do mundo, é o seu termo implacável, mas o poder de Jesus é eterno e, depois de sofrermos e morrermos por Ele, ressuscitaremos para eternamente reinarmos com Ele.

Pedro repreende Jesus…

32 Ele dizia isso abertamente. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-Lo.

Há um leque de interpretações a propósito deste episódio, desde as de autores calvinistas de mau espírito, como refere Maldonado,4 até as de Santos e doutores. Para bem entendê-lo, devemos levar em conta a falta de conhecimento dos Apóstolos sobre a Paixão de Nosso Senhor. Com efeito, logo depois de ter proclamado a filiação divina do Mestre, não era nada fácil a Pedro ter de admitir a necessidade de sua condenação e Morte, por mais que Ele falasse em Ressurreição. Nesta cena, se bem que não tenha sido Pedro quem falou, mas Simão, o filho de Jonas, não se pode negar que o tenha feito com enorme manifestação de benquerença. Os bons autores ressaltam o caráter afetuoso do gesto de Pedro. São Jerônimo,5 por exemplo, aponta esta circunstância, mostrando que Pedro pode ter errado no sentido, não no afeto. É nesta mesma linha que Beda explica: “Disse isto levado por seu afeto e bons desejos, como se quisesse dizer: não pode ser! E os meus ouvidos se recusam a ouvir que o Filho de Deus há de ser morto”.6

Jesus admoesta Pedro

33 Jesus voltou-Se, olhou para os discípulos e repreendeu a Pedro, dizendo: “Vai para longe de Mim, satanás! Tu não pensas como Deus, e sim como os homens”.

A própria dramaticidade empregada pelo Divino Mestre nesta reprimenda é didática, pois, deste modo, melhor conformou a mentalidade dos Apóstolos a um messianismo redentor através da dor. Esta é a opinião de São João Crisóstomo: “Que é isto? Aquele que havia sido favorecido por uma revelação, que havia sido proclamado bem-aventurado, cai tão rapidamente e se espanta com a Paixão? Para que percebais como, na confissão do Senhor, Pedro não falou por si mesmo, e vejais como nisto que não lhe havia sido revelado ele se turva e sofre vertigem, e mil vezes que ouça a mesma coisa, não sabe do que se trata. Que Jesus era Filho de Deus ele o soube; mas ainda não lhe tinha sido revelado o mistério da Cruz e da Ressurreição. […] O Senhor, então, para fazê-lo entender quanto estava longe de ir para a Paixão contra a sua vontade, não só repreendeu a Pedro, como o chamou de satanás”.7

E por que Jesus chama Pedro de satanás? Assim responde o padre Manuel de Tuya: “Naturalmente, não é que Pedro o fosse, nem que satanás o influenciasse (cf. Jo 13, 2), senão porque sua afirmação era digna da missão de satanás, a qual consistia em desfazer a autêntica obra messiânica, o que já havia pretendido fazer nas ‘tentações’ do deserto. Por isso a sugestão de Pedro a Jesus, que surge transbordante de afeto, é para Ele ‘escândalo’: tropeço, obstáculo, pois, a segui-la, seria boicotada a obra messiânica do Pai, o messianismo espiritual de morte de Cruz. Pedro, com isso, não olhava ‘as coisas de Deus, e sim as humanas’”.8

IV – As condições para seguir Cristo

34 Então chamou a multidão com seus discípulos e disse: “Se alguém Me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e Me siga. 35 Pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perder a sua vida por causa de Mim e do Evangelho, vai salvá-la”.

Esta afirmação tão categórica exige de nossa parte uma especial análise e degustação, por ser repetida, ademais, nos outros Evangelhos (cf. Mt 10, 38-39; Lc 17, 33; Jo 12, 25). Aqui se encontram as condições para sermos verdadeiros discípulos de Cristo.

“Se alguém Me quer seguir”: depende de nossa livre vontade. Esperar por uma graça que realize em nós a plenitude de nossa salvação, sem o menor concurso de nossa vontade, é confundir Redenção com criação, ou a vida eterna com a natural. Este convite, evidentemente, deve receber uma resposta afirmativa de nossa parte. E é indispensável que seja fervorosa, pertinaz e contínua. Ou, por outra, não podemos nos esquecer um só segundo desta determinação.

“Renuncie a si mesmo”: a origem de todos os pecados encontra-se no amor desordenado a nós mesmos, em detrimento da verdadeira caridade. E o melhor remédio para tão terrível enfermidade é esta renúncia, para nos encontrarmos em Deus. Seu primeiro grau consiste no horror ao pecado mortal, preferindo morrer a consentir nesta aversão a Deus. O segundo diz respeito ao pecado venial consciente e deliberado. O terceiro incide sobre as imperfeições e o amor-próprio, tão sorrateiro em imiscuir-se até na prática das virtudes. Ao se progredir neste último grau, maior se torna nossa liberdade interior, como também o gozo da paz e de consolações. Quem vive no oposto a estes três graus, ou não entendeu a grandeza deste convite, ou conscientemente o recusou.

“Tome a sua cruz”: há cruzes e cruzes! As extraordinárias se apresentam diante de nós em épocas de perseguição religiosa. São os suplícios e a própria morte. Devemos enfrentá-los, tal qual o fizeram Jesus e todos os mártires, jamais renegando a nossa Fé.

Outras haverá que são comuns a todos os tempos. Boa parte delas não são procuradas por nós, mas indesejadas, como por exemplo as doenças, as debilidades da ancianidade, os rigores do clima, etc. Outras, ainda, são oriundas do acaso: as perdas financeiras, as desgraças, os contratempos, a pobreza, a incompreensão e o ódio gratuito da parte dos outros, perseguições, injustiças. Às vezes, são os efeitos do nosso caráter, temperamento, inclinações individuais, etc.

Como são numerosas as cruzes que surgem ao longo de nossa vida!… Não as podemos evitar; pelo contrário, temos obrigação de carregá-las. E a experiência nos mostra como elas se tornam mais pesadas sobre nossos ombros quando as conduzimos entre choramingos e lamúrias, ou, pior, se contra elas nos revoltamos. Além disso, nestes casos diminuímos, ou até perdemos, os correspondentes méritos.

Por fim, há as cruzes escolhidas por nós, usando de nossa liberdade. Abraçar a via do matrimônio ou a de uma comunidade religiosa, ou até mesmo a de leigo solteiro vivendo cristãmente no mundo, significa compreender e desejar todos os sofrimentos que são correlatos a cada situação. O cumprimento perfeito de todas as exigências do respectivo estado de vida, a subordinação das paixões, o freio dos caprichos, a privação destas ou daquelas comodidades, etc., constituem um campo florido de cruzes, inerentes ao caminho eleito por nossa deliberação. Sem contar a aridez, o tédio, o desgosto que, de tempos em tempos, nos assaltam ao longo da estrada percorrida por nós, e sem volta atrás. Mas se nossa decisão foi consciente e, sobretudo, se teve origem num sopro do Espírito Santo, jamais devemos nos arrepender. Muito pelo contrário, enchamo-nos de ânimo e até de entusiasmo, dando passos firmes rumo à meta final de nossa salvação.

“E Me siga”: se empregássemos o melhor de nossos esforços, praticando os maiores sacrifícios para carregar nossa cruz, porém num caminho diferente do traçado por Jesus, não bastaria! É preciso abraçar a própria cruz, por Ele, com Ele e n’Ele. Na contemplação dos padecimentos da Paixão de Cristo encontraremos as energias para carregar nossa cruz.

Quanto a perder ou salvar a vida, comenta o padre Andrés Fernández Truyols: “O que o Mestre quer gravar no coração de seus ouvintes é que devemos estar dispostos a passar por tudo, até mesmo pela morte, desde que seja para salvar a alma. Porque de nada adianta ao homem ganhar o mundo todo se, no fim, vier a perder a sua alma, ou seja, se não alcançar a salvação eterna”.9

 

________________

 

1) Cf. SANTO AGOSTINHO. De consensu evangelistarum. L.II, c.53, n.108. In: Obras. Madrid: BAC, 1992, v.XXIX, p.429.

2) Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía LXIV, n.1. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (46-90). 2.ed. Madrid: BAC, 2007, v.II, p.137.

3) GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Año tercero de la vida pública de Jesús. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.III, p.44.

4) Cf. MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, v.I, p.599-600.

5) Cf. SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.III (16,13-22,40), c.16, n.41. In: Obras Completas. Comentario a Mateo y otros escritos. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.225.

6) SÃO BEDA. In Marci Evangelium Expositio. L.II, c.8: ML 92, 213-214.

7) SÃO JOÃO CRISÓSTOMO, op. cit., n.3, p.146.

8) TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.385.

9) FERNÁNDEZ TRUYOLS, SJ, Andrés. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. 2.ed. Ma­drid: BAC, 1954, p.369.

 

_______________________________________
#Leituras Dominicais
#Missa
#Leituras do próximo domingo
#Liturgia da Palavra
#Missa de Domingo
#Leituras eucaristia dominical
_______________________________________