Liturgia

16 de FEVEREIRO

VI DOMINGO DO TEMPO COMUM – ANO C

MISSA

Missa

ANTÍFONA DE ENTRADA Salmo 30, 3-4

Sede a rocha do meu refúgio, Senhor,
e a fortaleza da minha salvação.
Para glória do vosso nome, guiai-me e conduzi-me.

ORAÇÃO COLECTA

Senhor, que prometestes estar presente
nos corações rectos e sinceros,
ajudai-nos com a vossa graça
a viver de tal modo que mereçamos ser vossa morada.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,
que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.

LEITURA I Jer 17, 5-8

«Maldito quem confia no homem;
bendito quem confia no Senhor»

A vida do crente em Deus, e mais ainda do crente em Jesus Cristo, é orientada por uma sabedoria mais do que humana. Já desde o Antigo Testamento que esta sabedoria orientou os membros do povo da Aliança. Guiado, por ela, o homem pode distinguir sempre diante de si dois caminhos: o que lhe é apontado pela luz que vem de Deus e que a Deus conduz, e o que é iluminado só pelas luzes que vêm dos homens e que, por isso, não pode levar mais longe do que o horizonte do mesmo homem. O que segue por este último caminho será maldito, enquanto que o que envereda pelo primeiro será feliz e abençoado.

Leitura do Livro de Jeremias

Eis o que diz o Senhor: «Maldito quem confia no homem e põe na carne toda a sua esperança, afastando o seu coração do Senhor. Será como o cardo na estepe, que nem percebe quando chega a felicidade: habitará na aridez do deserto, terra salobre, onde ninguém habita. Bendito quem confia no Senhor e põe no Senhor a sua esperança. É como a árvore plantada à beira da água, que estende as suas raízes para a corrente: nada tem a temer quando vem o calor e a sua folhagem mantém-se sempre verde; em ano de estiagem não se inquieta e não deixa de produzir os seus frutos».
Palavra do Senhor.

SALMO RESPONSORIAL Salmo 1, 1-2.3.4.6 (R. Salmo 39, 5a)
Refrão: Feliz o homem que pôs a sua esperança no Senhor. Repete-se

Feliz o homem que não segue o conselho dos ímpios,
nem se detém no caminho dos pecadores,
mas antes se compraz na lei do Senhor,
e nela medita dia e noite. Refrão

É como árvore plantada à beira das águas:
dá fruto a seu tempo
e sua folhagem não murcha.
Tudo quanto fizer será bem sucedido. Refrão

Bem diferente é a sorte dos ímpios:
são como palha que o vento leva.
O Senhor vela pelo caminho dos justos,
mas o caminho dos pecadores leva à perdição. R.

LEITURA II 1 Cor 15, 12.16-20

«Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé»

A ressurreição é um artigo da fé cristã, expressamente proclamado no Credo. A ressurreição dos homens é consequência imediata da ressurreição do Senhor. Se Ele ressuscitou, os que n’Ele crêem e esperam, os que, por isso, estão em Cristo, também com Ele ressuscitarão. A Eucaristia, como aliás todos os sacramentos, celebra, em última análise, o mistério da Morte do Senhor, que, por ela, passou à vida do Ressuscitado. É este afinal o mistério da Páscoa cristã.

Leitura da Primeira Epístola do apóstolo S. Paulo aos Coríntios
Irmãos: Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos, porque dizem alguns no meio de vós que não há ressurreição dos mortos? Se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, ainda estais nos vossos pecados; e assim, os que morreram em Cristo pereceram também. Se é só para a vida presente que temos posta em Cristo a nossa esperança, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não. Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram.
Palavra do Senhor.

ALELUIA Lc 6, 23ab
Refrão: Alegrai-vos e exultai, diz o Senhor,
porque é grande no Céu a vossa recompensa. Repete-se

EVANGELHO Lc 6, 17.20-26
«Bem-aventurados os pobres.
Ai de vós, os ricos»

A perspectiva dos dois caminhos, já apontada no Antigo Testamento, é retomada, e com muito mais clareza, por Jesus. São as célebres “Bem-aventuranças”, que S. Lucas resume em quatro, contrapondo-lhes, em compensação, outras tantas “maldições”. É este um jeito literário, frequente também nos salmos, de expor uma ideia, primeiro afirmativamente, depois negando o ponto de visa oposto. Aqui a ideia resulta clara: o ideal do Reino dos céus não se rege por critérios terrenos. É preciso aceitar os critérios de Deus.

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos, e deteve-Se num sítio plano, com numerosos discípulos e uma grande multidão de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidónia. Erguendo então os olhos para os discípulos, disse: Bem-aventurados vós, os pobres, porque é vosso o reino de Deus. Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados. Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque haveis de rir. Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem, quando vos rejeitarem e insultarem e proscreverem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem. Alegrai-vos e exultai nesse dia, porque é grande no Céu a vossa recompensa. Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas. Mas ai de vós, os ricos, porque já recebestes a vossa consolação. Ai de vós, que agora estais saciados, porque haveis de ter fome. Ai de vós, que rides agora, porque haveis de entristecer-vos e chorar. Ai de vós, quando todos os homens vos elogiarem. Era assim que os seus antepassados tratavam os falsos profetas.
Palavra da salvação.

ORAÇÃO DOS FIÉIS

Irmãos e irmãs caríssimos:
Invoquemos Jesus Cristo,
que prometeu a bem-aventurança
aos que têm fome e sede de justiça,
e digamos (ou: e cantemos), confiantes:
R. Cristo, ouvi-nos. Cristo, atendei-nos.
Ou: Jesus Cristo, ouvi-nos.
Ou: Ouvi-nos, ó Rei da eterna glória.
1. Pelo nosso Bispo N. e pelos presbíteros e diáconos,
para que, no fervor da fé e do testemunho,
anunciem que Jesus ressuscitou dos mortos,
oremos.
2. Pelos pobres, para que o Senhor lhes dê esperança,
e pelos ricos, para que lhes converta o coração
e lhes dê gosto de repartir com quem não tem,
oremos.
3. Pelos que têm fome, para que encontrem o pão de cada dia,
e pelos que vivem na abundância,
para que tenham fome de Deus e da sua justiça,
oremos.
4. Pelos que choram enquanto vivem neste mundo,
para que o Senhor os console no seu amor,
e pelos que riem, para que lhes purifique os sentimentos,
oremos.
5. Pelos que são rejeitados e insultados,
para que Jesus os una à sua Paixão,
e lhes revele o mistério da sua Cruz gloriosa,
oremos.

Senhor Jesus Cristo,
que quisestes experimentar a perseguição e a pobreza,
a fome, a incompreensão e a dor,
dai-nos a graça de sentir a força da vossa ressurreição
e ensinai-nos a falar da felicidade que a todos prometeis.
Vós que viveis e reinais por todos os séculos dos séculos.

ORAÇÃO SOBRE AS OBLATAS
Concedei, Senhor,
que estes dons sagrados
nos purifiquem e renovem,
para que, obedecendo sempre à vossa vontade,
alcancemos a recompensa eterna.
Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho,
que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.

ANTÍFONA DA COMUNHÃO Salmo 77, 24.29
O Senhor deu-lhes o pão do Céu:
comeram e ficaram saciados.

Ou Jo 3, 16
Deus amou tanto o mundo que lhe deu
o seu Filho Unigénito.
Quem acredita n’Ele tem a vida eterna.

ORAÇÃO DEPOIS DA COMUNHÃO
Senhor, que nos alimentastes com o pão do Céu,
concedei-nos a graça de buscarmos sempre
aquelas realidades que nos dão a verdadeira vida.
Por Nosso Senhor.

 

Excertos do livro “O inédito sobre os Evangelhos”
de autoria do Mons. João Scognamiglio Clá Dias, E.P.

O Sermão da Montanha

As bem-aventuranças enunciadas por Jesus mudaram o curso da História e marcaram o início de uma nova era: o Cristianismo. A crueldade do mundo pagão foi assim ferida de morte. E a doutrina da obediência à Lei requintou-se até alcançar um sublime grau: a prática do amor e o desejo de santificação. Neste artigo, o leitor encontrará um dos fundamentos do carisma dos Arautos do Evangelho.

I – Divina preparação para a exposição da doutrina

Apesar de não serem dotados de razão e, portanto, inca­pazes de entender uma doutrina, os animais aprendem como se tivessem uma escola de ensino. Há entre eles um forte relacionamento instintivo, pelo qual uns transferem aos outros as experiências adquiridas.

Por exemplo, num determinado momento, a águia começa a treinar seus filhotes a lançarem-se nas primeiras tentativas de voo; a leoa transmite à sua cria lições práticas de caça; e os in­setos são alvo do instinto materno da galinha, quando estimula seus pintainhos a encontrar alimentos.

Primeira etapa da formação: o convívio

Num plano superior, isto ocorre também com o homem, ser inteligente e possuidor de um nobre instinto de sociabilida­de. No colo da mãe, a criança recebe as primeiras lições: no mo­do de ser abraçada, beijada, acariciada… ela vai adquirindo as primeiras noções sobre o convívio social. Depois, no trato com os irmãos e parentes mais próximos, observando seus modos e costumes, ela assimilará o estilo próprio à sua família. E só muito mais tarde chegará a ocasião propícia para uma formação doutrinária e metódica.

Assim também procedeu Jesus com seus Apóstolos e com seu povo.

Os primeiros passos para a fundação da Igreja

Já havia o Salvador pregado nas sinagogas da Galileia, “e era aclamado por todos” (Lc 4, 15); multiplicava maravilhas por onde passava, expulsava os demônios dos possessos a ponto de levan­tar a interrogação: “Manda com poder e autoridade aos espíritos imundos, e eles saem?” (Lc 4, 36); curara a sogra de Pedro e um incontável número de outros enfermos (cf. Lc 4, 38-41); operara a inesquecível pesca milagrosa (cf. Lc 5, 1-7); quebrando todos os padrões multisseculares, tocara num leproso, tornando-o são (cf. Lc 5, 12-14); e perdoava os pecados (cf. Lc 5, 18-20). Assim, devido a um convívio que se tornara assíduo, todos estavam já tomados pela exemplaridade de Jesus em seus mínimos detalhes.

Com a eleição dos doze Apóstolos, concluiu Jesus com cha­ve de ouro a primeira fase do ensino. Tornava-se agora necessário expor sua doutrina de maneira metódica, a fim de conferir um embasamento lógico a todas as suas ações e ensinamentos.

E é nessa sequência que se insere o Sermão da Montanha.

Com muita propriedade, a esse respeito assim se expres­sa Fillion: “A instituição do Colégio Apostólico e o Sermão da Montanha são fatos conexos e ambos têm elevadíssimo signi­ficado na vida de Jesus. Com razão são considerados como os primeiros passos para a fundação da Igreja. Com a eleição dos Apóstolos, procurava Ele auxiliares e preparava continuadores oficiais; ao pronunciar seu grande discurso, promulgava o que expressivamente tem-se chamado a Carta do Reino dos Céus”.1

A pregação e o proceder de Jesus eram inéditos para a psi­cologia e mentalidade daqueles povos da Antiguidade. Por isso, não só para os judeus comuns, mas até mesmo para os próprios Apóstolos, era indispensável uma exposição estruturada do pen­samento do Divino Mestre. Uns e outros estavam maravilhados, mas chegara o momento de Ele dar a conhecer de forma clara e sintética, sobretudo aos Apóstolos, a doutrina em função da qual se movia. Ademais, dada a progressiva dissensão entre Ele e os escribas e fariseus, fazia-se oportuna uma definição de pro­grama, para assim se tornar efetiva a profecia do Velho Simeão: “Eis que este Menino está posto para ruína e ressurreição de muitos em Israel e para ser sinal de contradição” (Lc 2, 34).

II – O maior paradoxo da História

Antes de nos aprofundarmos na análise das bem-aventu­ranças, consideremos o grande paradoxo que represen­tou, para a época, o Sermão da Montanha.

Os antigos gregos costumavam chamar de paradoxo ao enunciado (moral ou doutrinário) que contrariasse a opinião pública comum e corrente. E autores de grande fama afirmam ter sido esse Sermão o mais contundente, amplo e radical para­doxo havido até então.

Para melhor compreendermos o quanto Jesus abalou os fundamentos do paganismo na gentilidade e alguns desvios in­troduzidos nos costumes do próprio povo eleito, recordemos em rápidas pinceladas qual era o quadro social da Antiguidade, ao iniciar o Redentor sua vida pública.

Os costumes da Antiguidade

Pode-se facilmente encher páginas e mais páginas com fatos demonstrativos da degradação do mundo antes de Jesus Cristo. Limitemo-nos a alguns dados fornecidos pelo conceitua­do historiador Weiss.

Diz ele: “Em toda a Antiguidade, a mulher é vista como um ser inferior. Seu valor é, segundo Aristóteles, pouco diferente do de um escravo. Sempre está submetida à tutela do pai ou do espo­so, […] o marido tinha sobre ela direito de vida e de morte”.

E continua: “O pai era, não só o chefe, mas o déspota da família, e o filho era sua propriedade absoluta: podia vendê-lo até três vezes, podia matá-lo […]. A criança recém-nascida era apresentada ao pai; se este a levantasse, ela seria criada; se a deixasse no solo, seria abandonada, […] seria lançada na água ou largada às feras no bosque. Na melhor das hipóteses, fica­ria exposta em locais públicos, à disposição de quem quisesse educá-la para a escravidão ou a prostituição”.

Não era muito maior o valor atribuído à vida do pobre: “O egoísmo levou o mundo antigo a desprezar a pobreza. […] Pla­tão opina que não é preciso preocupar-se com o pobre quando este fica enfermo, pois, não podendo mais trabalhar, sua vida de nada mais serve”.

Quanto aos escravos — mais de um milhão, só em Roma! — estes não tinham direito algum, podiam ser tratados como mí­seros sapatos velhos. “O romano […] classificava assim os instru­mentos: ‘uns são mudos, como o arado e o carro; outros emitem vozes inarticuladas, como os bois; o terceiro fala, é o escravo’”.

O gozo desenfreado da vida, em Roma, a tal ponto embru­teceu os homens que, afirma Weiss: “Agora só o sangue os podia estimular. […] O que mais agradava ao romano era ver morrer homens”.2 E dá alguns exemplos: Numa representação teatral, incendiar uma casa para as­sistir à morte de todos os seus habitantes. Em outra, crucificar um chefe de ladrões e, vivo ainda, trazer ursos famintos para devorá-lo diante da assistência. Numa terceira, atirar um jovem do alto de uma torre, para a plateia vê-lo espatifar-se no chão.

Tudo isto, note-se, nas duas grandes civilizações da época: a grega e a romana. O próprio povo eleito tinha alguns costumes de crueldade inegável. Por exemplo, a escravidão de gentios, a pena de talião, o impiedoso tratamento dado aos leprosos, etc.

III – O mandamento da perfeição

Esta era a situação do mundo pagão quando Jesus dirigiu aos seus discípulos e à grande multidão o Sermão da Montanha.

São Mateus desenvolve mais amplamente essa exposição doutrinária do Divino Mestre em seu capítulo V, terminando por uma síntese de toda a matéria no versículo 48: “Sede, pois, perfeitos, como também vosso Pai celestial é perfeito”. Eis aqui a substância das bem-aventuranças — assim como das maldi­ções opostas — resumidas por São Lucas no Evangelho de hoje. Detenhamo-nos na sua consideração.

Ao criar a alma humana, Deus infundiu-lhe um forte an­seio de felicidade. Daí o não ter havido, e nem haverá, quem nunca a tenha procurado. Sobretudo em épocas como a nossa, tão atravessada por dramáticas crises, apreensões e sofrimentos, torna-se ainda mais aguda essa veemente apetência.

Onde, porém, encontrá-la com inteira segurança?

Deus nada cria senão para si. Por esta razão, fora d’Ele os seres inteligentes — Anjos ou homens — não obtêm verdadeira felicidade a não ser cumprindo com a finalidade última para a qual foram criados. É sobre esta relação entre o homem e Deus que incide a grande promessa feita por Jesus: a de sermos bem­-aventurados nesta Terra e post-mortem, por toda a eternidade, no Céu.

“Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação”

Nós cristãos, enquanto batizados, temos a obrigação de não perder o estado de graça. Se, por fraqueza ou maldade, dele nos vejamos privados, com diligência devemos procurar recupe­rá-lo. Essa é a chamada perfeição mínima.

No Sermão da Montanha, Jesus não nos impõe a obrigação de sermos perfeitos. Porém, manifesta o desejo de que o aspirar a esse estado constitua um dos pontos essenciais da nossa exis­tência. Além disso, tantos foram os tesouros por Ele deixados à humanidade — o Batismo, a Confirmação, a Eucaristia, etc. — que, só por gratidão a tão imensos benefícios, já seria uma obrigação da nossa parte nos colocarmos a campo para atingir a meta enunciada por Jesus.

Com muita razão, a respeito da universalidade desse dever de santidade, assim se expressa João Paulo II: “É preciso redes­cobrir, em todo o seu valor programático, o capítulo V da Cons­tituição Dogmática Lumen gentium, intitulado ‘Vocação Univer­sal à Santidade’. […] O dom [de santidade concedido à Igreja] gera, por sua vez, um dever que há de moldar a existência cristã inteira: ‘Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação’ (I Tes 4, 3). É um compromisso que diz respeito não apenas a alguns, mas ‘os cristãos de qualquer estado ou ordem são chamados à plenitude da vida cristã e à perfeição da caridade’ […] Como explicou o Concílio, este ideal de perfeição não deve ser objeto de equívoco, vendo nele um caminho extraordinário, percorrível apenas por algum ‘gênio’ da santidade. Os caminhos da santida­de são variados e apropriados à vocação de cada um”.3

São Paulo é incansável em frisar a necessidade da perfei­ção sem limites, como substância da vocação do cristão: “Bendi­to seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos aben­çoou com toda a bênção espiritual do Céu em Cristo, assim co­mo n’Ele mesmo nos acolheu antes da criação do mundo, por amor, para sermos santos e imaculados diante d’Ele…” (Ef 1, 3-4). É comum, ao longo de suas Epístolas, encontrarmos uma verdadeira sinonímia entre os termos “cristão” e “santo”, tal era o seu empenho neste particular (cf. Ef 4, 13; I Tes 4, 3.7).

Deus é infinito. Portanto, quem é chamado a amá-Lo tem por fim último um Ser ilimitado. O amor nosso é uma potên­cia criada com aspiração por Deus, e por isso diz Santo Agos­tinho: “Nossos corações foram criados para Vós e só em Vós repousam”,4 ou seja, a própria potência do amor em si mesma visa o infinito. Por isso afirma São Bernardo: “A medida de amar a Deus, consiste em amá-Lo sem medida”.5

O próprio Jesus, com divina radicalidade, assim reforça o Mandamento dado a Moisés: “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu enten­dimento e com todas as tuas forças” (Mc 12, 30). Daí se conclui termos o dever de buscar o fim em toda a sua amplitude, e de empregar, para atingi-lo, todos os meios ao nosso alcance.

Ademais, toda vida, também a sobrenatural, é suscetível de progresso, e tem em si uma força dinâmica que busca seu de­senvolvimento. No que diz respeito ao nosso corpo, esse proces­so se verifica instintiva e prazerosamente. Quanto ao espírito, porém, é indispensável a aplicação de nossa inteligência e de nossa vontade, a fim de cooperarmos com a graça de Deus.

IV – As bem-aventuranças

Feitas essas considerações, passemos a analisar com va­gar os diversos versículos do Evangelho deste domingo.

17 Descendo com eles, parou numa planície. Estava lá um grande número de seus discípulos e uma grande multidão de povo de toda a Judeia, de Jerusalém, do litoral de Tiro e de Sidônia.

De todas as partes acorriam os enfermos e curiosos, uns para serem libertos de seus males, outros para comprovar a rea­lidade da fama de Jesus, que se espalhara.

E por que não subiram todos para encontrar-se com Je­sus no cimo do monte? São Beda, o Venerável, assim nos expli­ca: “Rara vez se observará que as turbas tenham seguido Jesus até as alturas, ou que Ele tenha curado algum enfermo no ci­mo de monte; senão que, uma vez curada a febre das paixões e acesa a luz da ciência, devagar sobe-se até o cume da perfeição evangélica”.6 Por isso o Divino Mestre desce com os Apóstolos recém-eleitos para estar com a multidão que O aguardava.

20a Levantando os olhos para seus discípulos, dizia…

São variadas as interpretações dos autores a propósito desse gesto de Jesus. Pela própria narração de Lucas, tem-se a impressão de estarem os discípulos localizados num plano mais alto que o da multidão e como talvez desejasse oferecer àquela gente um certo exemplo, apesar de estar falando a todos, fixa seu olhar nos Apóstolos.

20b “Bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o Reino de Deus”.

A pobreza é citada em primeiro lugar por ambos os evan­gelistas, por ser a mãe das outras virtudes. Como poderia, aliás, alguém entrar no Reino dos Céus possuído do amor a este mun­do e aos seus bens?

Quem é considerado “pobre”, segundo o Evangelho? Lázaro possuía uma das maiores fortunas de Israel, entretanto era pobre de espírito. E, em sentido oposto, Judas por sua ga­nância, apesar de pouco ou nada possuir de bens materiais, foi traidor por ser “rico” (de espírito).

Matéria não faltaria para escrevermos um longo tratado sobre este versículo 20, e numerosos são os auto­res conceituados que dis­correm com precisão de conceitos a respeito dessa bem-aventurança. Para os efeitos deste artigo, basta focalizar o quanto a riqueza ou a pobreza de­vem ser assumidas como meios de atingir a santi­dade. O importante não é ter ou não dinheiro. A questão se põe em como dispor dele para adquirir o Reino de Deus.

O grande mal de todos os tempos é o de almejar a fortuna por pu­ro gozo da vida, e não pa­ra melhor servir a Deus. E, debaixo desse prisma, não vem ao caso ser ri­co ou pobre, porque o primeiro desprezará o segundo, este invejará o outro e ambos incorrerão na sentença contida no versículo 24: “Mas ai de vós, os ricos, porque tendes já a vossa consolação”.

Por essa razão, é absolutamente preferível nada possuir, a cometer um pecado, ou até mesmo, a esfriar na piedade.

21a “Bem-aventurados os que agora tendes fome, porque sereis saciados”.

O Evangelista opõe a esta bem-aventurança a maldição contra os que vivem na fartura, porque virão a ter fome: “Ai de vós os que estais saciados, porque vireis a ter fome”. De onde conclui o famoso Cornélio a Lápide que, aqui, trata-se realmen­te de fome de alimentos, e não apenas algo espiritual.

É este o mais alto grau desta bem-aventurança: suportar com resignação cristã — portanto, sem revolta, sem inveja e sem ódio — os sacrifícios decorrentes da pobreza material; isto torna o pobre um bem-aventurado.

Por outro lado, também são bem-aventurados os que têm fome de Deus. A estes últimos, Deus alimentará com a sua graça, com mais abundância, na medida do desejo de perfeição. É uma “fome”, afirma Cornélio a Lápide, que ao mesmo tempo alimenta até à fartura, pois no Céu seremos saciados de felicidade e glória.

21b “Bem-aventurados os que agora chorais, porque haveis de rir”.

Os pecadores encontram sua falsa felicidade na transgres­são da lei de Deus. A estes adverte Jesus severamente, porque no dia do Juízo hão de chorar sua condenação eterna: “Ai de vós, os que agora rides, porque gemereis e chorareis”. Ademais, ainda nesta Terra, apesar de sua aparente alegria, vivem de tris­teza, pois a consciência continuamente os acusa de suas faltas. Ao prazer decorrente do pecado sempre se segue o remorso pe­la falta cometida.

Mas aqueles que choram de arrependimento pelos próprios pecados, já encontram, na sua contrição, consolo e felicidade. A experiência nos ensina que o arrependimento traz alegria, e é fruto da graça de Deus.

Também os que suportam com paciência as dificuldades são bem-aventurados, já nesta vida. Pois, embora sofram e “cho­rem”, a paciência alcançada com a graça de Deus os envolve de suavidade e paz de alma. Pelo contrário, os que se mostram in­conformados nas adversidades, esses carregam no coração uma profunda amargura.

22 “Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, vos repelirem, vos carregarem de injúrias e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do homem. 23 Alegrai-vos nesse dia e exultai, porque será grande a vossa recompensa no Céu. Era assim que os pais deles tratavam os profetas”.

No ser humano, o instinto de sociabilidade é mais profun­do e sensível que o de conservação. São numerosos os homens que enfrentam grandes perigos, e a própria morte, mais por pressão da sociedade, pelo medo do ridículo, de serem tidos por covardes, do que por autêntico heroísmo.

As perseguições violentas contra a Igreja, ao longo da His­tória, povoaram o Céu de mártires e fazem pasmar de admira­ção o mundo inteiro. Às perseguições morais, é menor o núme­ro dos que resistem. No mundo de hoje, quantos perdem a Fé, por não aguentarem a pressão do ambiente de ateísmo prático que os envolve? E por isso, em nossos dias, talvez seja mais me­ritório proclamar a Fé diante do riso irônico de um círculo de pseudoamigos, do que o era ante o rugido das feras no Coliseu, nos primeiros tempos do Cristianismo.

Por vezes, pior ainda do que a perseguição dos maus, é a incompreensão dos bons.

Mas, “ai de vós quando os homens vos louvarem”, acres­centa Nosso Senhor, porque este seria o sinal de nossa falta de integridade, pois o mundo só aceita as meias verdades e a virtu­de frouxa, nisso empregando uma forma encoberta e mais cô­moda de praticar o mal.

Jesus começa o enunciado das bem-aventuranças com a promessa do Reino dos Céus, e com ela termina, para dar a entender que também com a prática das demais se alcança o mesmo prêmio, deixando subentendido o quanto elas são inter­ligadas. Não basta praticar uma delas isoladamente, desprezan­do as restantes.

V – O Sermão da Montanha nos dias de hoje

Fundada a Igreja, com sua progressiva expansão e pene­tração nas capilaridades das sociedades daqueles tem­pos, Deus e sua lei foram colocados no centro da vida humana, numerosos foram os que passaram a praticar os con­selhos evangélicos e uma nova era brilhou sobre a Terra, a do Cristianismo.

E hoje, o que é feito dessa era? O terrorismo ameaça, os sequestros se alastram, o roubo de crianças prolifera, o comércio de órgãos humanos se avoluma, o crime, os vícios e o desrespei­to se impõem; assistimos cotidianamente à expansão de ódios, guerras intestinas e internacionais, matanças de inocentes, ao desaparecimento gradual e progressivo do instituto da família… Enfim, quanto mais haveria para enumerar! Não estaremos nós vivendo agora dias piores do que os da Antiguidade?

E por que o Sermão da Montanha não produz, hoje, os mesmos efeitos de outrora?

As raízes dos males atuais são idênticas às dos horro­res da época de Jesus, que sinteticamente assim se poderiam enunciar: “a finalidade última do homem se cumpre nesta Ter­ra, por isso ele deve fruir todos os prazeres que a vida e este mundo lhe oferecem, pois Deus não existe”. Assim sendo, con­tinua válido — e mais do que nunca — na sua integridade, o Sermão da Montanha.

Qual, então, a razão dessa insensibilidade?

Falta à humanidade uma graça eficaz que a faça, como o filho pródigo, ter saudades da casa paterna e querer retornar às delícias das consolações de quem ama verdadeiramente a Deus, seus Mandamentos, e ao próximo como a si mesmo.

Quiçá, depois de uma divina intervenção, melhor com­preendendo e amando o Sermão da Montanha, a humanidade, convertida, abrace como nunca a perfeição e se torne realidade, assim, a profecia enunciada por Nossa Senhora em Fátima: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!”

 

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1) FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor JesucristoVida pública. Madrid: Rialp, 2000, v.II, p.91.

2) WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1928, v.III, p.652-657.

3) S. JOÃO PAULO II. Novo Millennio Ineunte, n.30-31.

4) SANTO AGOSTINHO. Confessionum. L.I, c.1, n.1. In: Obras. Madrid: BAC, 1955, v.II, p.82.

5) SÃO BERNARDO. Tratado sobre el amor a Dios. c.VI, n.16. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 1993, v.I, p.323.

6) SÃO BEDA, apud SÃO TOMÁS DE AQUINO. Catena Aurea. In Lucam, c.VI, v.17-19.